Aurora Incorpora Cobra Coral

AURORAS (2021)                                                                                                                                                                            são paulo, brasil

Aurora Incorpora Cobra Coral:

uma perspectiva afro-religiosa

Robson Cruz

Babalorixá e Antropólogo | 2021

“Cabelo traz para uma mansão senhorial no Morumbi a experiência de um sensível inspirado na manifestação mediúnica da religiosidade afro-brasileira. Esta afirmação tangencia apenas a mais tênue superfície daquilo que a exposição em questão é capaz de suscitar. Enquanto sacerdote afro-religioso e apreciador de arte, consegui enxergar algumas camadas – ou melhor dizendo, alguns fragmentos que dizem respeito à minha própria experiência religiosa, o que me fez sentir, na tarde de abertura, como se estivesse não em uma vernissage comum, mas participante de uma celebração ritual. A possível incongruência de tal sentimento diz respeito ao contraste entre o universo da arte, com suas regras e protocolos muito específicos, e a abertura da casa dentro da qual outras aberturas sinalizadas por Exu se manifestavam.  

 

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Ali, domina, soberana, a divindade Exu, fundamental no panteão afro-religioso, sendo principalmente aquele que propicia as aberturas, não raramente sendo ele mesmo a própria abertura. Abertura de entrada e de saída, na qual ele ocupa o limiar, o limes, o limite, o não-lugar, onde tudo rigorosamente pode ser e ocorrer, além do bem e do mal. Esta posição o coloca em uma zona de indefinição, que une e separa, que não está rigorosamente nem dentro nem fora e que, por isso mesmo, aponta para um perigo inerente a um estado de expectativa da perda de um status para obtenção de outro. Não é fortuito, portanto, que a mostra seja marcada por uma “sinalização”, por conjuntos de ideogramas mostradas em suas gravuras, fazendo recordar as “marcações de espaço” dos grafites e pichações urbanas. Estes signos de rebelião e “sujeira” , limites em movimento, marcadores de fronteira que paradoxalmente não demarcam, mas invadem territórios institucionalizados. Instrumentos de desterritorialização.

O signo da incorporação, no título da mostra, faz recordar que o corpo (como a casa à qual é sinonimizado na citação de Lygia Clark que serve como um dos motes da exposição) é um território. Nos ritos de incorporação por divindades e entidades da religiosidade afro-brasileira, este corpo de desterritorializa. Passa a pertencer a um outro, emprestando-lhe a solidez, o gesto, a voz, o olhar. Cobra Coral é a denominação de uma entidade afro-indígena cultuada na Umbanda, que traz em seu nome o poder da serpente homônima do gênero Calliophis, pequena, de aparência frágil, porém temível. Um signo de perigo que a associa à coleção de signos que corporificam a mostra e, por extensão, a Exu..

Esses signos desenhados por Cabelo são irredutíveis à interação comunicativa (muito embora Exu seja, entre outras coisas, a divindade da comunicação). Eles mostram, alertam, atraem e repelem do perigo enquanto foco de evitação ou sedução. Fascinam como o mítico olhar da serpente, em suas cacografias (como decidi denominar). Entretanto, como a serpente que simboliza, a exposição tem sua estrutura segmentada, a abertura devidamente manifestada nos signos representando Exu, como a encruzilhada e os falos que nos acompanham o tempo todo - um caduceu do Hermes-condutor-de-almas. Batuta do mestre de cerimônias.

Esta abertura, porém, parece abandonar sua indefinição liminar diante do signo expresso no Espelho de Ferro, no qual o expectador enxerga ícones de funções sensíveis: visão, audição, tato, paladar, vocalização e sexualização. Contudo um mistério se estabelece: será que se trata de um espelho no qual enxergamos nossas funções primais, ou um tabuleiro do qual pegamos emprestadas essas funções que o dia a dia debilitou em nós, ou serve como depositório para essas funções que este mesmo dia a dia “viciou” para ali podermos largar a nossa “pele” qual serpentes e nos expormos, desnudados de nossas capas “civilizadas”, como criancinhas curiosas e destemidas, para as surpresas de novos sentidos? “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate...”

No outro extremo (que é simultaneamente centro) a lareira, a assembleia dos espíritos e a máscara ancestral sagrada, a face /fauce moloquiana e terrível que a lareira da casa, original e etimologicamente morada dos lares, espíritos domésticos da casa greco-romana, agora ocupada por potências nada domesticáveis, tendo no seu âmago o próprio Exu. A abertura da lareira se converte em Exu Enubarijó, a Boca Coletiva escancarada e gulosa, com olhos e narinas fumegantes, mostrando dentro dela estes espíritos indômitos, sem explicitar se os está engolindo ou regurgitando, ou simplesmente mostrando como uma criança careteira e insolente. Este âmago simbólico/icônico da casa parece expressar o próprio mecanismo na incorporação. Exu é o artefato deslocado que a casa ingere para se render enquanto corpo - sinuoso, fálico, dançante e transmutante de Cobra Coral.

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Uma, das mil e uma estórias d'Aurora

Cabelo

| 2021

Àquela hora
Daquele dia
Ao nascer do Sol
Nascia Aurora

Nesta casa
Cresceu
Tornou-se mãe
E avó

Quando pequena
No quintal
Vivia uma coelha
Chamada Lua
E logo chegou um cabra
Chamado mar

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Num mês de maio
Vermelha
Como os olhos da coelha
Floriu a Lua

Lua do Buda

Subiu ao céu
Se pôs no mar

E dessa união
Um ovo

Nesta noite
Menina Aurora
Em sonhos
Por anjos foi visitada

À aurora despertou
E no quintal encontrou
O ovo
Coberto de orvalho

Grande era o ovo

Abraçando-o com cuidado
Levou-o à lareira
Para ser chocado

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Luz com Trevas

Espaço BNDES (2018)
Rio de Janeiro, Brasil
Festival Multiplicidades (2019)
Finalistas Prêmio Pipa (2019)

Luz com trevas

(cinema expandido)

Lisette Lagnado

catálogo da exposição | 2018

“Luz com trevas” pode ser definido como antiexposição. À primeira vista, talvez corresponda à exuberância de um bazar saturado de mercadorias. Intitulada a partir de uma música do Cabelo, a mostra reúne uma variedade de objetos e utensílios sobre plataformas móveis, tecidos vibrantes e projeções de pequenos filmes, com o argumento de atrair passantes dentro de um experiência imersiva. De que maneira, no entanto, agregar o transe da população que atravessa o térreo de um edifício comercial e diluir o verniz que separa o olhar ilustrado de uma nação de excluídos?

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Baixaram então as entidades presentes na obra do Cabelo num percurso de duas décadas: Cobra-coral, Exu e MCs. O artista tirou partido da localização estratégica da galeria, no Largo da Carioca, onde circulam milhares de pessoas por dia. Bem sabe que, em tempos de distopia, uma multidão não qualifica a massa de trabalhadores registrados, mas sobretudo, desempregados, mascates, mendigos etc. Contexto ideal para quem se apropria de quadros de guerra e da vida precária—donde o parentesco em toda uma mística que envolve a guerrilha do poeta marginal e a sedução do anti-herói no cinema (O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla).

Sofás, tapetes e TVs compõem "k-roças" equipadas de "ovos-bomba". São alguns dos dispositivos desenvolvidos pelo artista para catalisar manifestações. Cabelo, escoltado de convidados e cúmplices, interpela os errantes que desviam da rota. Com seu freestyle característico, invoca Rimbaud contra Rambo, a rebeldia, a magia e a força da poesia contra os poderes do Império, para cantar beleza do caboclo em praça pública. Sem apego à pureza dos circuitos oficiais da arte, esse "mestre de cerimônias" vem construindo um campo ativo com capacidade de imantar o rumor explosivo de uma urbe desgovernada.

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