Humúsica

MAM – Museu de Arte Moderna (2012)
Rio de Janeiro, Brasil

Humúsica

Texto para o catálogo da exposição Humúsica

Luiz Camillo Osorio

catálogo da exposição | 2012

“Abandonei a faculdade de engenharia para criar minhocas. Muito me fascinou o poder alquímico desses anelídeos de transformar merda em húmus”. Neste momento começava também a trajetória artística de Cabelo, assumindo a criação como um processo de germinação e metamorfose. O artista aprende com as minhocas a fertilizar o mundo com a energia extraída das impurezas. O que interessa na sua obra tem muito a ver com a mobilização de forças produtivas.

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Humúsica é uma exposição sobre tudo: desenho, performance, poesia, escultura, música. É uma exposição-instalação do Cabelo. E também do MC Minhoca e do DJ Esterco. Não há que se ater aos detalhes. Tudo é húmus (e música). Uma coisa se transforma e se fertiliza na outra. Metamorfose e ruído. Contaminações que fazem um elemento residual se tornar possibilidade plástica.

Na noite de abertura jovens dançarinos da periferia foram convidados pelo artista para a performance de abertura. Em 1965 os passistas da mangueira foram barrados no MAM; agora, seus “filhos” dos bailes funks são convidados para uma apresentação improvisada! O choque dissolveu-se ou o museu reinventou-se? Os dois talvez, sem que isso implique a neutralização de forças. Deslocamentos abrem linhas de fuga no interior da própria inserção institucional. O atrito instituinte se produz hoje no seio da negociação institucional. A ausência de um “fora” idealizável reinventa-se enquanto outras formas possíveis de estar dentro.

A obra acontece junto a uma temporalidade grávida de “agoras”. Obra-processo. Nada vem para o espaço expositivo já feito, mas se deixa instalar poética e plasticamente pelas novas relações constituídas em ato. “O funk é uma das manifestações mais autênticas, potentes e originais da cultura carioca e dá voz a uma parcela significativa e ainda bastante discriminada da sociedade. Mc Fininho surgiu para dar vazão aos funks que compunha e não tinham espaço no meu repertório. Identifico muito do meu processo criativo, da minha produção, com essa crueza, com o espírito do faça você mesmo, com as gírias, com a capacidade de samplear e de se apropriar sem a menor cerimônia. O que me interessa é justamente a manifestação dessa energia libertária, direta, que vai contra a assepsia e anemia reinantes.”

A poesia é o elemento germinador. A palavra vira carne e as letras garatujas e desenhos. As imagens não se fixam e o gesto é sangrado e sujo. Lixo e luxo. Natureza e cultura. Terra e pixel. O ateliê do Cabelo está em Copacabana, entre o morro e a praia, entre a confusão e a lentidão. São muitas temporalidades e um só espaço. Um presente contaminado, potente e caótico - como todo este universo poético que se põe em cena agora no MAM.

Cabe ressaltar que o caótico não está a serviço de uma improvisação estilizada. Não se trata de um maneirismo contemporâneo, mas de uma aposta no acontecer poético que brota de uma abertura do trabalho. A linguagem que vem a ser antes de tomar-se consciência dela e depois de um pôr-se na direção dela. A salinha escura é o espaço de interiorização do caos e de germina- ção de potencialidades poéticas. Projeções reba- tem em espelhos, deformam-se e reconfiguram- se através dos objetos e dos fragmentos. A placa “Desvio Obras” pendurada na entrada diz tudo pelo avesso: é no desvio que a obra nasce.

  1. As citações do artista são parte de uma entrevista nossa realizada para o livro ABC, organizado por Adriano Pedrosa e Luisa Duarte.

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