Escrito pelo Raio

Galeria Marília Razuk (2006)
São Paulo, Brasil

De pedra e pano

Esculturas e desenhos do artista Cabelo, repletos de circularidade e repetição, sugerem um potente mantra visual

Juliana Monachesi

revista Bravo! nº 107 | Julho de 2006

O mundo da arte ficou perplexo diante de suas esculturas. Como pode um artista da leveza e da fluidez realizar uma exposição individual com 25 esculturas em pedra? Seria este o mesmo autor dos conhecidos desenhos de fluxos de consciência sobre tecido? Não eram dele os vestígios de performance que, na Documenta de Kassel de 1997, foram confundidos com lixo e varridos no dia seguinte ao da inauguração da pomposa mostra alemã de arte contemporânea? As instalações efêmeras e as músicas de improviso, que em tudo se opõem a uma cultura estática, não são sua marca registrada? Por que então Cabelo decidiu fixar em pedra sua linguagem inconfundível? Ou seria mais correto perguntar como raios ele conseguiu fazer isso?
 

Escrito pelo raio é o título de sua mostra na galeria Marília Razuk, em São Paulo. “Raio” é a tradução da palavra em sânscrito vajra, um material indestrutível (que também pode significar “o vazio de todas as coisas”). Além das esculturas, há dois desenhos expostos. Em verde sobre tecido preto, as formas orgânicas características do artista ali estão, familiares. Mas essas duas obras não estão penduradas na parede. Ficam no chão da galeria, como um convite a olhar para baixo. Ou, então, um convite a sentar-se. E, quando observadas desta perspectiva, as “esculturas” em pedra revelam o que de fato são: desenhos em baixo-relevo, mais desconcertantemente fluidos do que os próprios desenhos sobre tecido.

Aos poucos, e conforme a visita rastejante pela exposição evolui, surgem rastafaris fumando seus baseados, iogues meditando na posição de lótus, tartarugas, budas, larvas, palavras soltas, haicais, inscrições arcaicas, seres flutuantes, cabeças pensando sob a forma do balãozinho dentro do qual outra cabeça “pensa”. A circularidade e a repetição ganham a potência de um mantra visual.

A verdade é que os desenhos em pedra fazem os desenhos em tecido parecem estáticos demais, porque a superfície destes últimos é plana, apreensível em uma única visada. A pedra tem seus veios, que o artista explora habilmente, seja para mimetizar as costas de um ser meditativo, seja para se referir ao rosto de uma figura enigmática (divina?), e tem sua forma orgânica que Cabelo aproveita para modelar a torção de uma serpente ou da fumaça de um cigarro de maconha – que por sua vez também pode ser um rio jorrando da cabeça de Shiva. Sim, budismo e hinduísmo, entre outras fontes de energia vital e disposição zen, alimentam a produção do artista até a medula.

As obras mais figurativas da exposição não são aquelas em forma de tartaruga ou de Budas. As peças de maior densidade são as menos trabalhadas escultoricamente, que guardam, em sua forma bruta, os mistérios da narrativa alucinante de Cabelo: quando deparamos com inscrições nas pedras o percurso pela exposição fica mais sincopado. Lemos “idade da pedra”, “idade da luz”, “aqui agora”, “amanhontem”, “daqui pra diantes”. O artista está falando de iluminação ou de trevas? Da transcendência ou da finitude? No vocabulário de Cabelo não parece haver a conjunção “ou”. Pedra e pano e arte e lixo e vamos em frente.