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Violência e paixão

Trecho de Violência e Paixão: Um viés romântico-expressionista na arte contemporânea brasileira

Ligia Canongia

2002

“…O fato de Cabelo ter-se utilizado de uma imagem de William Blake – O Ancião dos Dias, 1794 – em um de seus primeiros trabalhos, já poderia ser um indício de sua ligação com a estética romântica. Blake era tido como louco, tinha o apelido de mad Blake e era considerado artista visionário, cujas imagens e escritos guardavam um tom profético. O Ancião dos Dias apresenta a criação de um deus geômetra segurando um compasso dentro de um círculo de luz, e o compasso parece simbolizar a vontade da razão de reger a realidade sensível.  Mas Blake cria um paradoxo terrível na imagem, pois ao mesmo tempo em que demonstra o imperativo da razão no mundo, coloca a razão como efeito de uma vontade, mais imperiosa ainda, de um deus, ou seja, da espiritualidade. Esse misto de espiritual e sensível, de ideal e experimental, de loucura e racionalidade, perpassa todo o tempo o trabalho de Cabelo. As ‘mensagens’ alucinantes e religiosas de Blake, que também era poeta, Cabelo – outro artista-poeta- contrapõe palavras dispersas, sintaxes incompletas, um caleidoscópio semântico que, alem de conjugar o verbo à visualidade, unifica todos os animais, roupas, sacos de lixo, aquários, fogo, fotos jornalísticas, palavras, tudo se embaralha no frágil castelo de cartas da existência, em busca de sentido.

Iconoclasta, avesso às hierarquias, multifacetado e libertário, Cabelo é sem dúvida afilhado desta eterna síndrome romântica, que ele certamente recolhe dos exemplos europeus mais remotos, mas também de seus pares brasileiros recentes, como Oiticica e Barrio. É ainda a poética do informe (que Oiticica já vislumbrava em certos bólides e nos parangolés), a anarquia das matérias (que Barrio instaurou com tanta radicalidade), o senso simultâneo da crítica e da transcendência (que Blake configurou como um profeta) o que rege os objetos e performances de Cabelo. E ele parece reger, com seu lirismo e seu ‘compasso’ sem medidas, a grande luz do círculo de Blake, que não é mais o clarão iluminista do século XVIII, porque ciente já das névoas que vieram para ficar.”