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Fragmentos de uma epopéia

Texto que amplia e desenvolve as idéias contidas em Ut pictura poesis

Jacopo Crivelli Visconti

livro Cabelo | 2010

Ut pictura poesis: mais do que a equiparação imortalizada por Horácio em sua Ars Poetica, os desenhos de Cabelo sugerem a fusão entre elementos pictóricos e poéticos, uma mistura explosiva em que letras e palavras se sobrepõem a imagens apenas esboçadas, pistas, indícios de histórias nunca desenvolvidas plenamente. Artista culto, que não esconde suas fontes, porém avesso a todo tipo de catalogação, Cabelo é tanto poliédrico quanto vulcânico. Figuras afloram e desaparecem, fragmentos de frases se sucedem na tela sem a ambição de constituir um sentido completo ou coerente. Como em suas performances, o artista não dá ao expectador todas as chaves de leitura, mantém-no em suspenso, sempre um passo aquém da compreensão. A sua narração é uma sobreposição oracular e fragmentada de motivos e ideias. Como qualquer oráculo, inclusive, os desenhos de Cabelo precisam ser interpretados, e prestam-se a mil e uma leituras, todas diferentes e todas igualmente válidas. Mas o que realmente justifica a analogia, contudo, não é a existência de um significado recôndito, e sim a consideração de que os desenhos de Cabelo destinam-se, em primeiro lugar, aos iniciados.

Iniciar-se na arte do Cabelo não requer cerimônias místicas ou provas traumáticas, demanda, apenas, a disposição para retomar a narração lá onde o artista, conscientemente, a suspendeu. A disposição, isto é, para contar a fábula, para assumir para si um papel de criador, e não apenas de observador. Não pode ser considerado casual, nesse sentido, que a superfície mais usada pelo artista para seus desenhos seja um simples e levíssimo tecido. Coloridos e móveis, os lenços de Cabelo só passam de fato a existir como obras através da participação direta e fértil do observador, a quem é delegada, em última instância, a tarefa de colocá-los em ação. Esta intervenção fecundante se dá tanto do ponto de vista intelectual, no desenvolvimento dos rascunhos narrativos disseminados pelo artista, quanto do ponto de vista físico: as telas leves e quase transparentes se movem com o vento produzido pela passagem dos visitantes. É bastante significativo, nesse sentido, que o artista tenha intitulado uma das séries mais representativas desses desenhos sobre lenços Suite Volátil [1], trocadilho com a célebre série de gravuras de Picasso, Suite Vollard, mas principalmente maneira bem-humorada de enfatizar a importância da leveza do suporte.

Na instalação Mi casa su casa, exposta, entre outros lugares, na 26a Bienal de São Paulo (2004), o universo imaginário do artista ganha uma dimensão quase arquitetônica: perambulando por entre as paredes por ele mesmo acionadas, o visitante é absorvido pelas imagens, e tentando decifra-las se envolve mais e mais nessa hipnótica teia de aranha, sendo sugado num mundo inacabado, até olvidar-se de si mesmo. Metade Penetrável de Hélio Oiticica, metade Casa/Corpo de Lygia Clark, para citar duas das referências mais recorrentes e significativas no universo de Cabelo, o labirinto de Mi casa su casa não tem saída. Borges dizia conhecer un laberinto griego que es una línea única, recta [2], e de fato, mesmo quando instalados de maneira a criar uma espécie de corredor, como na obra sugestivamente intitulada Aventuras do poeta Edi Simons, e até quando estão soltos, sem nenhuma referência arquitetônica, seus desenhos possuem um encanto quase hipnótico, convidam o observador para dentro, para o outro lado. Ou talvez, para outro tempo: o traço de Cabelo possui algo de imemorial, primigênio, algo de Lascaux e Altamira, seus personagens nos resultam estranhamente familiares, apesar de desconhecidos.

Quase a confirmar esse caráter atemporal, em outras séries o desenho, enfatizando também sua fisicidade sempre evidente, torna-se autêntico graffito, isto é, em seu sentido etimológico, risco, escoriação. Nas obras apresentadas na exposição Escrito pelo raio[3]por exemplo, o artista utilizava como suporte a pedra sabão mineira, a mesma empregada por Alejadinho e outros escultores barrocos. Antes de ser decoradas com os desenhos, algumas das pedras tinham sido esculpidas em forma de tartarugas e budas, evocando, nas palavras do próprio Cabelo, “elementos de tempos e lugares distintos, reunindo os pensadores pré-socráticos, como Zenon e seus paradoxos, Heráclito e seus fragmentos” [4]A mudança do material empregado como suporte dos desenhos, que em outros casos parecem quase traçados no ar, de tão móveis e fugazes, e nessa série adquirem, pela pedra, uma solidez quase eterna, é fundamental, ontológica, mas a abundância de referências demonstra como o modus operandi de Cabelo continua substancialmente inalterado: da escolha do material às referências iconográficas e filosóficas, o artista acrescenta incessantemente mais e mais camadas de possíveis significados e possíveis interpretações.

Em alguns trabalhos da série Mianmar Miroir, inclusive, a sobreposição de camadas torna-se, além de estratégia conceitual, técnica para a construção da obra, que nasce da fusão, permitida pela transparência do voile, dos típicos desenhos do artista com a reprodução fotográfica, por vezes distorcida, da célebre imagem dos gêmeos Johnny e Luther Htoo, que aos dez anos de idade tornaram-se líderes da guerrilha cristã Exército de Deus, engajada, no final dos anos 1990, na luta contra a ditadura na Birmania (atual Mianmar). Os poderes sobrenaturais atribuídos aos gêmeos, o misticismo visionário das suas afirmações, a constante transposição da tênue fronteira da loucura, e até a rapidez na conclusão da sua alucinada trajetória, que fica como suspensa e à espera de um desfecho, tudo faz de Johnny e Luther personagens naturais de uma história de Cabelo, e a frequente alusão ao tema do espelho reforça a sensação de que eles constituam, antes do que um fato de crônica, apenas um fragmento da epopéia que Cabelo constrói, com seus desenhos, há mais de vinte anos.

  1. Expostos na mostra homônima, realizada na Galeria Paulo Fernandes, Rio de Janeiro, 2002.
  2. BORGES, Jorge Luis, “La Muerte y la Brújula”, em Artificios, Alianza Editorial, Madrid, 1995, pág. 49.
  3. Galeria Marília Razuk, São Paulo, 2006.
  4. Citado na nota de imprensa da exposição.