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Cabelo agora

Sobre a exposição dos finalistas do Prêmio PIPA 2019

Fred Coelho

catálogo da exposição | 2019

Cabelo é um artista que nos demanda multiplicidades. Sua obra se instala cada vez mais na simultaneidade de formas, sentidos e materiais. Ao longo de quase trinta anos de trajetória, tal situação atinge um ponto preciso com Luz com Trevas, uma ação permanente do artista nos último dois anos que ativa som, palavra e imagem em cruzamentos constantes. Em 2018, articulou com um grupo de colaboradores o lançamento de um disco e uma exposição no BNDES com o mesmo nome, promovendo ações entre distintas áreas de criação. O disco, produzido por Kassin e Nave e com composições inéditas de Cabelo, tornou-se um show cuja ambiência é extensão da exposição feita com a curadoria de Lisette Lagnado. A parceria com Raul Mourão sob o codinome Rato Branko também se transformou em shows, festas, blocos de carnaval e exposições coletivas. Dessa forma, todos os seus trabalhos se atravessam e se expandem em direção às múltiplas ideais que provocam.

Essa proposta de uma obra em trânsito permanente invoca da parte do público o compromisso com o transe em tempos de imobilidades. Cabelo percorre diferentes espaços, diferentes bairros, diferentes corpos, diferentes credos, diferentes línguas, constituindo um campo poético ampliado de ação. É fundamental que o contato com seus trabalhos ative essa rede para se mergulhar num mundo ao mesmo tempo singular e plural. O olhar de Cabelo atravessa frestas e silêncios, indo das iluminações ameríndias às sombras da vida urbana subterrânea. São energias milenares em movimento que através de sua perspectiva vibram cores, formas e vozes. Não à toa, suas exposições e shows demandam sempre a instauração de uma ambiência específica que nos atrai para seu interior e nos desloca do senso comum. Lisette Lagnado, curadora da exposição de 2018, percebe essa capacidade de inventar espaços autônomos temporários ao formular um glossário no catálogo de Luz com Trevas. Os termos extraídos por ela e engendrados por Cabelo se espalham entre obras, personagens e entidades do imaginário popular brasileiro, demonstrando essa criação de mundo promovido pelo artista. Ele se apropria organicamente de diferentes informações em movimento e elege o princípio dinâmico de Exu como bússola criadora de seu trabalho. Vale ainda destacar que o nome escolhido para o disco, o show e a exposição não cria uma imagem binária – luz e trevas – e sim uma imagem trans – luz com trevas. Como um exemplar personagem do contemporâneo, Cabelo nos convoca a enxergar luz no escuro e o escuro na luz.

Ao criar seus ambientes e espaços expositivos recentes, vemos espelhos, máscaras, plantas, telas e outros suportes insólitos ficarem imersos dentre tecidos de cores estampadas, ocupados por palavras e desenhos de formas e corpos vibráteis. O bastão à óleo de Cabelo cria personagens elétricos que emitem raios e contorcem luzes de LED. Há também seus Ovos-bomba, esculturas-pinturas que anunciam a eminência da explosão-nascimento de outros seres em gestação. São trabalhos que materializam todo momento de expansão e concentração que Cabelo atravessa. Se vistos sob a ótica do arquivo, seu ovo-bomba cria diálogos com a interioridade poética dos ovos de Lygia Pape, além de também trazer a tensão violenta das Urnas quentes de Antonio Manoel. Algo ali está prestes a explodir (e o que não está ultimamente?). Como afirma Clarice Lispector, “o ovo é uma coisa suspensa” – são esculturas nascidas de luzes com trevas, que fazem de um espaço a conflagração simbólica de um ritual de vida e morte.

Como um colecionador de fragmentos da vida material e espiritual, Cabelo injeta em sua obra uma densa trama de informações. Suas canções atuais constroem personagens para serem incorporados em seus ambientes. Eles são espectros que a poesia de Cabelo cria em som e palavra para logo depois se materializarem em novas situações imagéticas. Ouvindo cada uma delas, vamos de Cafarnaum a Copacabana, da subida do morro ao mundo do além. Vale lembrar que seu trabalho sempre teve o som e a música como motores fundamentais – basta lembrarmos mais recentemente as exposições MC Fininho, exibida na Gentil Carioca em 2011 e Humúsica, exibida no MAM-RJ em 2012. Com Luz com Trevas, Cabelo evoca novamente sua presença performática, fazendo cada vez mais com que o corpo do artista seja também o do músico e o do poeta. Sem separações – na verdade, nunca as reivindicou – e sem limites para fazer sua obra funcionar, os palcos de seus shows são parte ativa dos ambientes que ele vem montando nos últimos anos, assim como suas exposições sempre contam com apresentações sua e de convidados. O que ele canta reverbera o que vemos e vice-versa.

Ao longo de sua trajetória, Cabelo abordou de diferentes formas as tensões inerentes ao contemporâneo. Criou performances desafiadoras, personagens sombrios, abrigos poéticos, objetos insólitos cuja bricolagem associa o inusitado de seres e materiais. Sua capacidade de observar o caos e captar a justa medida de humor e horror ganha atualmente nova força. Agora, porém, tais materiais são cada vez mais vivos e ativos. Atento às potências de seu tempo, Cabelo articula sua arte com funkeiros, ogans, poetas de rua, barbeiros, dançarinos, xamãs e crianças, transformando seu espaço expositivo em um laboratório do presente – e, porque não, de futuros. Sua escuta está ligada com as manifestações que trazem os discursos afiados contra as formas de controle e opressão sobre negros, LGBTQs e demais grupos que cada vez mais se afirmam publicamente através dos espaços da arte e da política. Aqui, novamente, o aspecto presencial faz do trabalho de Cabelo comentário incisivo sobre o agora. Suas ações vivem no limiar entre a celebração e a transgressão – ou melhor, se fazem no cruzamento dessas: uma celebração transgressora.

Como tudo está em movimento, Cabelo acrescenta outra camada de fruição em seu trabalho: o cinema. Seus vídeos, feitos de acasos visuais e observação deambulatória da cidade, são apenas parte das imagens que podemos retirar de seus trabalhos. Na canção que batiza seu projeto multimídia, o anúncio é direto: cinema é luz com trevas. Seus ambientes de panos e estampas se transmutam em uma sala de projeção, em que o faixo luminoso do filme precisa da escuridão assim como o som precisa do silêncio. “Cinema de caboclo” que também está presente nas iluminações atingidas por Cabelo através de contatos com as obras e rituais de Ailton Krenak e Davi Kopenawa. Como Exu, Cabelo põe para conversar tradições ameríndias e afro-brasileiras com o seu contexto urbano e maquínico. Cinema é movimento, cinema em movimento, ouvimos aqui todas as línguas para todos os corpos que estejam dispostos a serem deslocados através dessas encruzilhadas.

Em períodos cujos dias nos parecem ásperos e desanimadores, muitas vezes perdemos a fala – ou, ao menos, o desejo de falar. E se contra o inominável faltam palavras, no caso de Cabelo elas sobram. Ou melhor, elas se multiplicam na velocidade da sua inteligência de poeta-artista-músico-cineasta. Seu trabalho nunca foi tão atual frente aos desafios contemporâneos que estão postos para o campo da arte e para a sociedade em geral. Inclusivo por princípio, poético por método e transgressor por natureza, a cada exposição Cabelo vem constituindo uma ética, um compromisso com o seu tempo. O ímpeto experimental e inventivo que sempre o alimentou ganha novas camadas em seu eixo crítico. Sua indisciplina estratégica permanece o levando a extremos nas apropriações devoradoras de materiais, mas nos últimos anos vemos um criador mais interessado nos impactos imediatos dos cruzamentos que provoca. Seus ambientes são compostos em ressonância às ideias de suas canções, seus desenhos são materializações de seus personagens, suas letras são frutos de visões existenciais e contaminações poéticas. Citando um verso de Paulo Leminski, Cabelo divaga, mas não dispersa. Ou, como diz em “Luz com trevas”, “desgovernada a massa inverte a direção”.

Nesse sentido, o que vemos agora é o melhor momento de um artista que já vem há tempos demonstrando a força de um trabalho sempre feito contra a história e seus consensos. Sem obedecer a escolas ou tendências e construindo uma trajetória independente, Cabelo permaneceu fiel aos mundos que cria em cada uma de suas exposições. Ao produzir a partir do risco, propõe respostas imediatas aos problemas que se apresentam – em todos os níveis. Isso faz com que seu trabalho seja sempre atual, e que suas ações necessariamente ativem no tempo presente arte e política. Uma obra que chega ao ano de 2019 pronta para ser o que se propôs desde seu começo: a rebelião sem trégua.