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Breve história do funk carioca

Texto publicado no catálogo da exposição Cabelo apresenta MC Fininho e DJ Barbante no Baile Funk (Gentil) Carioca

Silvio Essinger

catálogo da exposição | 2011

No começo, era o baile. Reunião de jovens cariocas diante de uma novidade: o funk. E naquela alvorada de anos 70, funk era o balanço selvagem, sujo, sexual e tão perigoso quanto sedutor, com que o americano James Brown arrastava corações, quadris e mentes mundo afora. Baile funk: ao invés dos couros, madeiras e cordas em que soavam o samba, potentes alto falantes das equipes de som trombeteando grooves para a felicidade da moçada de grana curta e disposição longa. Um tsunami black seguiu pelas linhas da Central, inundou subúrbio e baixada, e as vítimas até hoje comemoram: todo fim de semana, o baile funk ainda é, já é, demorou.

Ao longo do tempo, porém, a música dos gringos passou por sucessivas mutações – disco, discofunk, eletrofunk, hip-hop… novidades acolhidas sem grilos pelos Djs do baile. deglutido tal qual um bispo Sardinha que aportasse na praia de Ramos, esse som alienígena se incorporou então aos batuques e cânticos locais. E virou a música de uma cidade que nasceu no samba e se criou no ratatatá das metralhadoras. Virou o batidão, pancadão… a música do baile carioca – aquele baile que começou com Brown e entrou pelo novo milênio sem perder a alcunha funk.

Foi no final dos anos 80 que o grito da galera, a zoação com aquele refrão em inglês que ninguém entendia, virou produção. Doo wah diddy diddy dumm diddy do, mandava o MC americano de um lado, em disco. Do outro, em viva voz, a massa devolvia: mulher feia chupa p* e dá o c*. Sem pecado e sem juízo. O Dj copiou os beats, amenizou a letra (“cheira mal como urubu”) e botou no baile: nascia a “Melô da Mulher Feia”, primeiro sucesso do Funk brasil (carioca de origem).

A mensagem correu cidade e bateu nas favelas. Com armamento importado – solta o Volt Mix, Dj! – os meninos que se sacudiam e berravam nos bailes saíram apavorando: fizeram raps para contar de onde eram, como viviam e o que queriam. O baile tocou e eles fizeram mais. Um dia, o Rio inteiro tomou conhecimento de que a felicidade poderia ser encontrada lá, onde há muito ela parecia ter sido banida. “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci. E poder me orgulhar. E ter a consciência que o pobre tem seu lugar” (“Rap da Felicidade”, de Cidinho e doca, MCs da Cidade de deus). o funk demorou, mas abalou.

O Rio ouviu, o brasil ouviu. E dançou. Mas a violência no local é que ganhou as manchetes: brigas, arrastões, maus modos, um barulho que não deixava a vizinhança dormir… o funk encarnava tudo isso, como se fosse possível um gênero musical ser culpado por tudo que havia de errado na Cidade Maravilhosa. Enquanto isso, poucos se davam conta de que uma revolução cultural estava em curso. uma revolução marginal, sem registro, na chamada cultura oficial.

Mesmo assim, com mais manchetes nas páginas policiais do que no caderno de espetáculos, o funk não se intimidou. Falou de amor, de festa e da nem sempre bonita realidade da favela. Inspirou danças impossíveis. Pilhou a música pop da juventude classe média, as cantigas de roda dos avós, os disquinhos de faroeste sertanejo (Jack Matador!), a percussão dos terreiros de umbanda… e chegou ao ano 2000 com uma cara própria, pronto para outras invasões.

Quem viveu, viu. o Bonde do Tigrão abrindo o caminho para os jovens sarados da favela exalarem sensualidade. Tati Quebra-Barraco dando o troco aos MCs machistas. Mr. Catra misturando sexo, religião e consciência política com autoridade e voz de trovão. Serginho e o saudoso Lacraia desafiando estereóti- pos sexuais, com humor de piada de salão. Leozinho fazendo todo mundo dançar com suavidade. E o Créu botando tudo pra f* em cinco velocidades.

Hoje, funk é som, luz, dança, tese de mestrado, fonte de renda, problema com a polícia e sucesso na Europa (afinal, que Dj alemão resiste à pressão de seus beats feitos na raça?). É mulher fruta, tiração de sarro na internet, curtição da lourinha paulistana, trilha de videogame e tema dos programas de debates na tv. No país onde tudo acabava em samba… hoje o funk é que tem a resposta. pena que James Brown não está mais aí pra ver no que deu aquela sua semente.

Silvio Essinger foi repórter e crítico musical do Jornal do Brasil, redator da revista Manchete e editor do site Cliquemusic (www.cliquemusic.com.br), especializado em música brasileira. Colaborou com as revistas Billboard, Vizoo, Veja Rio, Trip, Vogue Rg, Personnalité, Outracoisa, Bizz, Oi, entre outras. Na Tv Globo, colaborou com o programa Por Toda Minha Vida. É autor dos livros Punk: anarquia planetária e a Cena brasileira (Editora 34, 1999), Batidão: uma História do Funk (Record, 2005) e Almanaque anos 90 (Agir, 2008). Participou, ao lado de Sérgio Cabral, Ruy Castro, Nei Lopes, João Máximo e Hugo Sukman, do livro de ensaios Canções do Rio (Casa da palavra, 2009). Em 2005, organizou o Baú do Raul Revirado (Ediouro), coletânea de textos de Raul Seixas.