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Arte Brasileira Contemporânea

Entrevista com Luiz Camillo Osorio para o livro ABC

Luiz Camillo Osorio

livro ABC Arte Brasileira Contemporânea | 2013

Luiz Camillo Osorio Lembro de vê-lo em meados dos anos 1990 fazendo performances com aquários, fogo e minhocas e também subindo ao palco com a banda Boato. Em ambos os casos, havia muita energia concentrada — plástica, orgânica, musical, poética, vital. Fale um pouco dessa relação entre música, performance e poesia na sua formação e na sua obra.

Cabelo Abandonei a faculdade de engenharia para criar minhocas.Muito me fascinou o poder alquímico desses anelídeos em transformar merda em húmus. Foi nesse mesmo período que, convalescendo de uma grave infestação de parasitas, tive contato com a poesia. Essa combinação entre minhocas e poesia deflagrou uma transformação radical, e me deu a consciência da capacidade do poeta de transformar em húmus os dejetos materiais e imateriais da civilização. Desde então, é a poesia que rege, ela é a fonte, a matriz. É uma velha sábia com corpo de moça, e procuro estar disponível para atender a seus caprichos. Assim ela se manifesta das mais diversas maneiras: palavra falada, palavra cantada, gestos, dança, performance… Tudo sinestésica e simultaneamente, de modo que não há como separar. Creio que, nas apresentações do Boato, isso se manifestava de uma maneira muito direta, orgânica e potente.

As várias linhas de força de sua poética — o desenho, a música, o texto, os materiais — têm como foco um acontecimento expressivo sempre marcado pela presença contundente do corpo. Um corpo rastejante, corpo-bicho, corpo-réptil e, ao mesmo tempo, um corpo-palavra, corpo-voz, corpo-desenho com entonação espiritual e plástica. Horizontalidade e verticalidade. Como você vê o lugar do corpo?

O lugar do corpo é aqui e agora. É primordial sua presença a cada instante da travessia. Para mim, o desafio é como administrar, como atender à demanda diária de energia. É o impulso poético que movimenta o corpo, gosto daquela placa: “DESVIO OBRAS”, pois trangressões e desvio são necessários para a realização da obra. Interessa-me justamente a beleza e a originalidade dos movimentos, das manobras desses corpo, no seu ir e vir, para que se cumpra a liberdade da sua linguagem.

Na sua última exposição n’A Gentil Carioca, em 2012, você criou um personagem, o MC Fininho. Ali, mais do que música, ra antes de tudo a pulsação de uma energia profético-social que se insinuava. Como se você visse no funk carioca a expressão máxima de resistência e rebeldia à normatização e à desvitalização. Fale um pouco disso.

O funk é uma das manifestações mais autênticas, potentes e originais da cultura carioca, e dá voz a uma parcela significativa e ainda bastante discriminada da sociedade. MC Fininho surgiu para dar vazão aos funks que compunha e não tinham espaço no meu repertório. Identifico muito do meu processo criativo, da minha produção, com essa crueza, com o espírito do faça você mesmo, com as gírias, com a capacidade de samplear e de se apropriar sem a menor cerimônia. O que me interessa é justamente a manifestação dessa energia libertária, direta, que vai contra a assepsia e a anemia reinantes.

O seu desenho é poesia ou sua poesia é desenho? Acho que essas duas escritas se contaminam e se desdobram na sua obra. Como você as articula?

O desenho é uma necessidade física, atividade repetitiva, compulsiva, geralmente veloz, que às vezes se assemelha a um transe. Com a palavra escrita é diferente: começo a trabalhar a partir de um fragmento, um insight, e depois o processo de elaboração é mais lento. Mas no momento em que as escrevo são caligrafias, são desenhos. Cada curva de uma letra, cada palavra, é carregada de uma intensidade, e ordená-las no espaço é uma exercício de composição. No final das contas, palavra e desenho misturam-se de maneira tão lúbrica que acabam por se transformar numa coisa só.